terça-feira, 30 de agosto de 2011

Gritos na multidão



Gritos na multidão - por Gustavo Poli

“Tudo o que eu aprendi sobre moral e obrigações… eu aprendi com o futebol”, disse certa vez o escritor argelino Albert Camus – que de palavras e coisas muito entendia. A frase desceu em minha cabeça – como uma bigorna de desenho animado – ontem, durante Flamengo x Vasco.

Eram 25 minutos do segundo tempo quando o repórter da TV Globo, Marcelo Courrege, informou:

- Luís Roberto, o Ricardo Gomes, que sempre fica em pé ao lado do gramado, está sentado no banco. Ele me disse aqui que está se sentindo mal.

Inicialmente parecia um breve mal-estar. Ricardo estava de olhos abertos, consciente, encostado no banco – sendo examinado pelo medico Fernando Mattar. A expressão era estranha – mas parecia algo como uma tonteira, excesso de calor. Não era.

Havia um Vasco x Flamengo, um jogo tenso, 21 atletas correndo, se esforçando, brigando, dividindo. Com um a menos, o Flamengo se multiplicava, marcava. O Vasco pressionava. Para os 33 mil presentes – a tensão estava no ar – como também em casa, para quem acompanhava a partida.

Quando a transmissão passou a mostrar a ambulância – em vez do jogo – qual foi sua reação de telespectador? Na vizinhança, pude ouvir um torcedor gritando:

- Tira essa ambulância daí, mostra o jogo!

As imagens mostravam pouco. Braços carregavam Ricardo, algo desconjuntado, para dentro do veículo. Havia demora. Ele parecia não conseguir ficar em pé. O jogo continuava.

 
Outra frase me veio – essa do lendário treinador do Liverpool, o escocês Bill Shankly. Disse Bill ali pelos anos 50 ou 60: “Algumas pessoas acham que futebol é um jogo de vida ou morte. Eu garanto que é muito mais importante do que isso”. Sempre me soou ótima – como frase de efeito. Nunca tinha levado a sério. Até ontem.

Para quase todos os presentes no estádio – e para milhões que assistiam pela TV – o jogo importava mais que a vida de Ricardo Gomes. Não que o drama de Ricardo não interessasse – ele simplesmente interessava… menos. Não vai aqui nenhuma recriminação – ninguém tinha noção precisa do que estava acontecendo – e mesmo se tivesse, não haveria muito a fazer (além de relativizar a importância de um jogo de futebol).

O show tinha que continuar – até por falta de alternativa. O que poderiam fazer os jogadores? Ou locutores? Ou torcedores? Claro que se tivesse acontecido uma tragédia em campo – o jogo teria sido interrompido. Mas, diante da dúvida, o torcedor queria futebol. Queria circo. O drama menor – ou particular – a gente podia ver depois.

E então chegamos ao pior momento da tarde. Inflamados pela atávica paixão clubística – alguns cretinos siderúrgicos começaram a gritar “Vai Morrer” na arquibancada Leste Superior do Engenhão. Como disse certa vez uma alma iluminada… perdoa, pai, porque eles não sabem o que fazem.

Quem gritou isso não representa a torcida do Flamengo. Não representa torcida nenhuma – representa apenas um sintoma. “Vai morrer” é um grito habitual da arquibancada carioca – usado, em geral, para intimidar árbitros. Ou adversários – como aconteceu durante o UFC Rio. É mais uma ironia do que uma crueldade – mas ontem esse parâmetro foi galgado.

Mencionar ou ironizar a morte quando ela é uma possibilidade presente é simplesmente vil. Já ouvi torcedores de vários times gritando coisas iguais ou piores – comemorando assassinatos de rivais, celebrando tragédias alheias. Todas as torcidas têm cretinos fundamentais. Mas, por mais abjeto que soe o grito – a vilanização tosca em nada ajuda. Os cretinos do Engenhão não tinham a menor noção da gravidade do caso. Estavam apenas brincando, sem perceber a maldade que praticavam.

O torcedor revela nosso selvagem íntimo – nossa violência ancestral. Em nome de nossa paixão aceitamos ilegalidades, aplaudimos cacetadas, gritamos palavrões. Estamos acostumados com isso – achamos libertador poder xingar juiz, jogador, adversário. Achamos que faz parte da etiqueta arquibalda – que é assim mesmo, que assim ajudamos… e que por nosso time tudo vale.

Vale? Uma multidão que grita “Vai morrer” diante de um socorro de ambulância… quer dizer alguma coisa. E alguma coisa ruim. Imagine o leitor, por um instante, a reação dos filhos de Ricardo Gomes – que estavam no estádio e sabiam do histórico anterior do pai (um AVC em fevereiro de 2010). Imagine e se coloque no lugar deles. Seu pai numa ambulância – e um coro torcedor de “Vai Morrer”… Ou imagine a reação do próprio Ricardo – dentro da ambulância, talvez consciente – ouvindo.

Camus estava certo – o futebol muito ensina. Nesse caso específico ensina – ou demonstra – que temos muita estrada pela frente. Reclamamos tanto de deputados, senadores, ladroagens e afins – mas os politicos ecoam nossa média moral. E não há termômetro melhor para entender essa média do que a multidão.

Muitos rubro-negros se indignaram com os gritos – e por causa disso quase houve confusão – tanto que o eco foi breve. Breve, mas revelador. No Coliseu antigo, vez por outra o Imperador perguntava à multidão sobre o destino de um gladiador derrotado. E, não raro, a multidão pedia sangue. UFC à parte, quase não temos mais sangue nas arenas modernas. Mas… a multidão – a nossa particular multidão – continua chutando princípios para escanteio quando interessa.

No vaidoso mundo do bola, Ricardo Gomes é um personagem peculiar. Não faz lobby, não expõe jogadores, levanta pouco a voz, não gosta muito de aparecer ou dizer platitudes. Na tragédia ou no drama, tendemos ao elogio – é verdade. Mas, invertendo o prisma, vale lembrar que a principal crítica ao Ricardo treinador sempre foi por seu excesso… de educação – porque o jogador brasileiro não estaria pronto para responder a um comando civilizado. Pode até ser verdade (embora o trabalho no Vasco venha desmentindo isso). Mas, nesse futebol de cro-magnons instantâneos e australopithecus de esquina, uma crítica dessas dispensa elogios.

O jogo terminou – sem gols. O Vasco x Flamengo eterno continua. Nossa estrada continua. Na vida privada de Ricardo, porém, há um jogo bem mais difícil pela frente. Que a força esteja com ele.
 
 
 
Retirado de  http://globoesporte.globo.com/platb/gustavopoli/2011/08/29/gritos-na-multidao/. Escrito por Gustavo Poli. Creditos a ele.

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